terça-feira, 15 de setembro de 2009

O RIO E O CANOEIRO



A Amazônia é um caleidoscópio legendário em tudo. Tudo nela é grandioso. O amazônida se torna pequeno diante da magnitude da geografia regional. Nela vive e sobrevive um caboclo forte, corajoso e indomável; sempre se desafiando a enfrentar as adversidades, o inóspito, o inusitado e o mistério de todos os dias: é o povo das águas que embeleza o nosso grande anfiteatro amazônico.
Na nossa Amazônia, o sistema de transporte tem uma peculiaridade: a comunicação e a integração social se fazem, praticamente, num circuito fluvial, onde as estradas são líquidas. Nos rios da Amazônia o meio de transporte mais usado é a canoa, feita exclusivamente por mãos do caboclo que a modela dentro de um processo artístico, técnico e tradicional. Quem comanda a canoa é o canoeiro, que se desliza pelo rio por meio do remo, instrumento de madeira que vai abrindo caminhos e removendo os segredos do rio em busca de seus desejos e vontades. É pelo remo, comandado pelo músculo do canoeiro, que as canoas se tornam transportes rápidos e protegidos; seu remo tem uma simbologia interessante: ele funciona como uma espécie de hélice e leme que orienta a liderança da canoagem.
A vida do caboclo é ligada aos rios e barcos que chegam e que partem produzindo sociabilidades, lazer, notícias, relações, processos, tramas e dramas dos mais diversos. Por isso que no dizer de Leandro Tocantins, o rio é um poderoso gerador de fenômenos sociais: é ele que enche a vida do homem de motivações psicológicas, imprime à sociedade rumos e tendências e cria tipos característicos na vida regional. Seja em que cidade da Amazônia for, podemos, então, encontrar a figura do canoeiro trajetando e costurando os rios que o liga a lugares diferentes, a coisas, a gentes, a destinos; ele desliza pelo rio Amazonas produzindo histórias e fazendo parte dessa história, e cumpre a trajetória do próprio rio que deve levá-lo ao destino que ele escolheu ou que lhe foi determinado. “O homem e o rio são os dois mais ativos agentes da geografia humana da Amazônia”, defende Tocantins.
Observando o canoeiro na hidrografia do baixo Amazonas, o vemos assentado na proa da igarité de onde rema e administra todos os movimentos necessários para cumprir seu percurso, onde o remo é o instrumento que governa a embarcação. Olhando o canoeiro contornando os rios de Parintins, temos a súbita constatação de que o rio parece infinito diante dos seus olhos; quem está fora daquela cena pode ter a impressão que o canoeiro vai ser engolido pela imensidão do seu destino. Não importa a idade; ele tem a sapiência de governar a canoa no rio que comanda a sua vida. No sistema de transporte fluvial de Parintins, o canoeiro impressiona qualquer incursão sociológica ou qualquer observador mais simples.
A canoa já experimentou um desenvolvimento significativo como sistema de transporte na Amazônia. Nessa região, ela é conhecida pelo nome de montaria ou igarité; só elas podem romper com a complexidade dos rios, furos, igarapés, igapós, baías, golfos, paranás e lagos, com um conhecimento fantástico que impede o canoeiro de se perder na imensidão das nossas estradas líquidas.
Um dado interessante na canoagem fluvial é que na experiência de solidão do canoeiro ele se auxilia e se familiariza com cantigas que alimenta o seu espírito, rezas que o livra dos seres miraculosos, amuletos para espantar o azar e lendas para acalmá-lo das agruras e dos mistérios.
Entre perigos, dramas e as tramas da água do Vale amazônico, o canoeiro se desafia sempre ao lançar-se na trajetória pelo rio. O que ele anseia ninguém sabe; sabe-se que ele quer conquistar e alcançar alguma coisa: encontrar e reencontrar sua família, lutar pela sobrevivência, solucionar problemas pessoais, socializar-se, conhecer pessoas, mercantilizar. Sabemos que ele sabe o que quer, onde quer chegar, para onde vai. Será?! Será que ele não está “perdido” nos rios da Amazônia em busca de uma vida melhor, mas que tem sido excluído economicamente e mutilado na sua dignidade? Será que não é mais um errante sem destino, sem rumo, sem perspectiva, vivendo dramas e tramas que a vida lhe impõe?
O canoeiro, como um personagem de relevância no cenário da sociedade regional, escreve na história da cultura brasileira, nos costumes regionais, na tradição e literatura, laudas memoráveis, que marcarão para sempre o conhecimento e os saberes dos povos.