terça-feira, 15 de setembro de 2009

O RIO E O CANOEIRO



A Amazônia é um caleidoscópio legendário em tudo. Tudo nela é grandioso. O amazônida se torna pequeno diante da magnitude da geografia regional. Nela vive e sobrevive um caboclo forte, corajoso e indomável; sempre se desafiando a enfrentar as adversidades, o inóspito, o inusitado e o mistério de todos os dias: é o povo das águas que embeleza o nosso grande anfiteatro amazônico.
Na nossa Amazônia, o sistema de transporte tem uma peculiaridade: a comunicação e a integração social se fazem, praticamente, num circuito fluvial, onde as estradas são líquidas. Nos rios da Amazônia o meio de transporte mais usado é a canoa, feita exclusivamente por mãos do caboclo que a modela dentro de um processo artístico, técnico e tradicional. Quem comanda a canoa é o canoeiro, que se desliza pelo rio por meio do remo, instrumento de madeira que vai abrindo caminhos e removendo os segredos do rio em busca de seus desejos e vontades. É pelo remo, comandado pelo músculo do canoeiro, que as canoas se tornam transportes rápidos e protegidos; seu remo tem uma simbologia interessante: ele funciona como uma espécie de hélice e leme que orienta a liderança da canoagem.
A vida do caboclo é ligada aos rios e barcos que chegam e que partem produzindo sociabilidades, lazer, notícias, relações, processos, tramas e dramas dos mais diversos. Por isso que no dizer de Leandro Tocantins, o rio é um poderoso gerador de fenômenos sociais: é ele que enche a vida do homem de motivações psicológicas, imprime à sociedade rumos e tendências e cria tipos característicos na vida regional. Seja em que cidade da Amazônia for, podemos, então, encontrar a figura do canoeiro trajetando e costurando os rios que o liga a lugares diferentes, a coisas, a gentes, a destinos; ele desliza pelo rio Amazonas produzindo histórias e fazendo parte dessa história, e cumpre a trajetória do próprio rio que deve levá-lo ao destino que ele escolheu ou que lhe foi determinado. “O homem e o rio são os dois mais ativos agentes da geografia humana da Amazônia”, defende Tocantins.
Observando o canoeiro na hidrografia do baixo Amazonas, o vemos assentado na proa da igarité de onde rema e administra todos os movimentos necessários para cumprir seu percurso, onde o remo é o instrumento que governa a embarcação. Olhando o canoeiro contornando os rios de Parintins, temos a súbita constatação de que o rio parece infinito diante dos seus olhos; quem está fora daquela cena pode ter a impressão que o canoeiro vai ser engolido pela imensidão do seu destino. Não importa a idade; ele tem a sapiência de governar a canoa no rio que comanda a sua vida. No sistema de transporte fluvial de Parintins, o canoeiro impressiona qualquer incursão sociológica ou qualquer observador mais simples.
A canoa já experimentou um desenvolvimento significativo como sistema de transporte na Amazônia. Nessa região, ela é conhecida pelo nome de montaria ou igarité; só elas podem romper com a complexidade dos rios, furos, igarapés, igapós, baías, golfos, paranás e lagos, com um conhecimento fantástico que impede o canoeiro de se perder na imensidão das nossas estradas líquidas.
Um dado interessante na canoagem fluvial é que na experiência de solidão do canoeiro ele se auxilia e se familiariza com cantigas que alimenta o seu espírito, rezas que o livra dos seres miraculosos, amuletos para espantar o azar e lendas para acalmá-lo das agruras e dos mistérios.
Entre perigos, dramas e as tramas da água do Vale amazônico, o canoeiro se desafia sempre ao lançar-se na trajetória pelo rio. O que ele anseia ninguém sabe; sabe-se que ele quer conquistar e alcançar alguma coisa: encontrar e reencontrar sua família, lutar pela sobrevivência, solucionar problemas pessoais, socializar-se, conhecer pessoas, mercantilizar. Sabemos que ele sabe o que quer, onde quer chegar, para onde vai. Será?! Será que ele não está “perdido” nos rios da Amazônia em busca de uma vida melhor, mas que tem sido excluído economicamente e mutilado na sua dignidade? Será que não é mais um errante sem destino, sem rumo, sem perspectiva, vivendo dramas e tramas que a vida lhe impõe?
O canoeiro, como um personagem de relevância no cenário da sociedade regional, escreve na história da cultura brasileira, nos costumes regionais, na tradição e literatura, laudas memoráveis, que marcarão para sempre o conhecimento e os saberes dos povos.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Os Problemas Ecológicos e as Relações entre Público e Privado


Por ser considerada uma atividade exclusiva que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, a ação equivale àquela condição humana que é o pluralismo, pelo fato de que o homem coletivamente vive na terra e habita o mundo. Esta dimensão da ação vem perdendo espaço diante da tendência conformista e homogeneizada da sociedade de massa.
Muitos programas sociais têm praticado a exclusão da possibilidade da ação, tendo em vista que a sociedade tem imposto inúmeras e variadas regras, todas elas objetivando “normalizar” os seus membros. Esta perspectiva invadiu o imaginário social impedindo que o espaço da ação política, da diversidade e da democracia se concretize nos processos sociais vigentes. A ruptura com este paradigma só pode acontecer quando a escolha da perspectiva focalizar mais o “por que” fazer do que “como” fazer, questionando as opções políticas atuais e o próprio conceito de educação vigente que deve estar alicerçada nos princípios da criatividade, inovação e criticidade.
Há uma diferença entre duas esferas de atuação na vida humana: a pública e a privada. Se na vida privada o homem busca proteção e refúgio face ao mundo, é na esfera pública que se localiza a possibilidade da plena realização da condição humana; é nesta esfera, por meio do discurso, que os homens podem agir, dialogando com a pluralidade dos outros homens para transformar a realidade.
O espaço público, além de significar aquilo que pode ser visto e ouvido por todos, designa o que é comum a todos; mas quando esta condição é ameaçada, gerando-se um desinteresse pelo que é comum, a lei do mais forte e a idéia de “levar vantagem em tudo” ganha força e credibilidade. Quando a esfera pública se deteriora, o meio ambiente, por exemplo, torna-se objeto de interesses privados e passa a ser tratado como “terra de ninguém”, onde a responsabilidade pelos prejuízos causados à população dificilmente são evitados ou assumidos por algum responsável. O problema ecológico repõe essa rica cadeia de relações entre o público, o privado e a prática da cidadania.
As lutas ecológicas, que defende a idéia de meio ambiente como um espaço comum, provocam uma crítica ferrenha à forma organizativa da sociedade atual, apresentando um projeto alternativo de organização societária. Dessa forma, a ecologia e as lutas sociais reafirmam que a gestão do meio ambiente é um problema público e um campo de luta política onde se confrontam interesses diferentes e divergentes, ou seja, é indispensável não só compreender, mas também intervir sobre como a qualidade de vida do planeta é ou não garantida pelas decisões políticas.
A luta ecológica revitaliza a abordagem de que o meio ambiente é um espaço comum, e, acima de tudo, um espaço público, onde nos relacionamos com os outros; é um espaço dialético, onde afetamos as ações e somos afetados por elas; onde os aspectos naturais e sociais estão em relações dinâmicas e em constante interação, provocando processos de criação cultural e tecnológica e processos históricos e políticos que mudam a natureza e a sociedade.
Meio ambiente não pode ser visto somente como sinônimo de meio natural. É preciso romper com um determinado tipo de conduta, pensar uma outra lógica para a ação, que não se confunda com a lógica da privacidade e da intimidade.

O Caboclo Amazônico e suas Práticas Religiosas


O homem que vive na Amazônia brasileira tem como principal prática religiosa o catolicismo. Mesmo sendo eminentemente católico, transita no universo das superstições e crendices que fazem parte do seu cotidiano cultural. Esta religiosidade se expressa através da devoção aos santos católicos e da reunião de diferentes comunidades, em momentos específicos, para celebrarem seus padroeiros.
Várias comunidades passam grande parte do ano se preparando para a participação em festas religiosas católicas numa demonstração de fé, de agradecimento por benefícios alcançados e renovação dos pedidos que fazem à imagem do santo protetor.
As novenas, o culto, a missa, a quermesse, as festas religiosas, as procissões não se caracterizam apenas por prestarem homenagens a santos do catolicismo, mas também por servirem de momentos de confraternização coletiva entre várias famílias e comunidades. Certamente são respostas simbólicas às mudanças sociais e ao processo de secularização do sagrado, produzidos pelos novos processos sociais que se realizam na Amazônia; são maneiras de resistir e manter relações e identidades diante de novas práticas e valores sociais.
Mesmo sendo um católico, o caboclo amazônico compartilha de uma concepção de universo impregnada de idéias e crenças oriundas da sua ancestralidade ameríndia. Em várias comunidades amazônicas, a ausência da igreja oficial não impedia que os devotos praticassem sua fé, suas crenças e suas devoções; nem significava que eram anti-religiosos. A própria população responsabilizava-se pelas atividades religiosas; as beatas e os beatos constituíam-se importantes líderes religiosos, devotos, “árbitros religiosos e morais” de suas comunidades correspondentes.
A população vive sua catolicidade ao seu modo, imprimindo suas particularidades teológicas, sociológicas e antropológicas. Acreditam que Deus e Cristo são adorados, apesar da virgem Maria e os santos terem maior evidência na religião local. O culto aos santos e a organização de irmandades religiosas não são típicas e nem exclusivas da religião do caboclo da Amazônia, tendo em vista a difusão dessas instituições em outras áreas brasileiras; tais instituições se revestem de um característico regional: a forte influência ameríndia, revelada em crenças e práticas religiosas dessa origem. Estas crenças se referem aos curupiras, aos anhangás, a cobra-grande, a matinta-perera, os botos e outros. Cada qual apresenta um conteúdo de “verdade”, estão recheados de valores aos olhos de quem os cultuam e os temem; além de outras crenças como os “companheiros do fundo”, as “mães de bicho”, os “bichos visagentos”, a “panema”, a “pajelança”, ou as “rezas”.
Os santos, ao contrário dos bichos visagentos, recebem culto e veneração, e com eles o caboclo estabelece relações através de orações, de promessas e de atos festivos; acredita-se que eles têm a função de proteger a comunidade e o indivíduo. A promessa cria um laço estreito de comprometimento entre o devoto e o santo. As crenças católicas misturam-se às crenças em poderes sobrenaturais e às práticas mágicas de origem nativa.
A Amazônia é uma terra onde existe uma espécie de amalgamação religiosa, onde a cosmovisão do mestiço e do caboclo amazônico foram assim convertendo-se numa intrincada amálgama de ideologia nativa e européia.
Compreender a formação do sistema religioso do caboclo que se estabelece singularmente na Amazônia, os processos que o diferencia etnicamente de outras identidades existentes e como ele interpreta a sua realidade a partir desses modelos conceituais é uma área que precisa ser estudada.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

A Realidade Amazônica na Mídia


O poder da mídia e suas influências é um tema instigante e que vem, em tempos de globalização, inquietando vários intelectuais preocupados de como a realidade da Amazônia, seus problemas, a cultura, seus povos, suas organizações e instituições sociais objetivamente aparecem nas reportagens e nas diversas programações oferecidas pelos meios de comunicação.
Uma reflexão acerca das relações mídia e os desafios da realidade amazônica e como eles têm sido abordados nas reportagens, as razões de determinados temas merecerem destaques, outros não, e os aspectos ideológicos que regem as matérias, na verdade, revelam os possíveis impactos que se expressam nas formas modernas da vida social. E é o que nós queremos refletir nesta comunicação e democratizar aqui.
As notícias têm chegado até nós com um invólucro do tipo espetáculo. Como temos assistido notícias de tragédias, vazamentos de petróleo no mar, degradação da fauna e da flora? Como temos usado essas informações no nosso dia-a-dia? São dados confiáveis? É bom que se diga que essas imagens, discursos, notícias, informações invadem nosso mundo mundializando um sentimento consensual de revolta e apreensão com o destino do planeta. Desse modo, pautas como os problemas ambientais, vividos pela sociedade brasileira e no mundo, ganham um espaço privilegiado na mídia. E por conta do avanço do desmatamento, do aquecimento global, do acirramento dos conflitos de terra, da questão indígena e da exploração de minérios, a Amazônia vem sendo abordada de forma pejorativa por agentes que não a conhecem ou que pretendem mesmo distorcer os fatos.
Criticamente, temos acompanhado dezenas de coberturas jornalísticas que não prezam pela seriedade do jornalismo, montagens de matérias que apresentam vícios graves e sérios; queremos nos manifestar contrários a essa postura ética que não é a do cuidado nem a da responsabilidade.
A sociedade precisa está mais preocupada com aquilo que assiste e ouve; precisamos ter mais cuidado e mais atenção para o problema da qualidade do conteúdo que se transmite na TV ou se anuncia nos jornais ou na Internet sobre o entendimento e interpretação da realidade do caboclo da Amazônia, das suas necessidades e desafios, da questão indígena, do problema do desenvolvimento e da sustentabilidade regional, da empregabilidade e renda, das intenções das políticas públicas governamentais. Isto porque as matérias sobre a amplitude das tragédias ambientais, dos desmatamentos desordenados, da poluição do ar e da água, têm se resumido a uma simples indignação e a um apelo espetaculoso; ao se falar sobre a necessidade de mudanças de atitudes, de prática social, estas não aparecem associadas com a contestação da ordem vigente nem com a ruptura do modelo histórico de desenvolvimento que orquestra a vida social. Constata-se, sobremaneira, uma arrogância do poder, uma prepotência absoluta do discurso hegemônico, uma estratégica despriorização do contexto, uma fragmentação dos discursos e a espetacularização do trágico.
É só olhar matérias que retratam o drama do consumo de água e as ameaças de racionamento; elas vêm acompanhadas de imagens impactantes, onde o desperdício é incriminado; também as matérias que discutem o papel dos esgotos na contaminação das águas mostram as empresas preocupadas com sua condição de poluidora; elas não aparecem em nenhum momento como as responsáveis pela poluição, mas inculca-se que a população é a grande vilã, e a responsabilidade do governo é dirimida nos discursos especializados.
Há uma ingenuidade em tais falas e ela aparece quando se pulveriza o discurso de que “há falta de água porque há desperdício e a solução indiscutível é racionar”. Não queremos defender que o desperdício não seja um complicador, mas apostamos que não é causa única. A crítica ao neoliberalismo revela uma multiplicidade de fatores que criaram as condições para a agudização desses problemas e desafios.
É deste modo que a concorrência mercadológica, a formação e as forças políticas e econômicas aparecem como elementos limitadores e que ofuscam uma abordagem comunicacional mais objetiva, e que tem levado a uma equivocada compreensão sobre a trama e os dramas amazônicos: os problemas na Amazônia devem ser interpretados como expressão de um complexo dialético de fatores políticos, econômicos, tecnológicos e culturais e de que o capitalismo é a base estrutural. A Amazônia, como uma formação econômico-social, é regida pela dinâmica do capitalismo e, portanto, está sujeita aos processos de expansão e crise do capital, é o que defende Marilene Corrêa da Silva em seu livro Metamorfoses da Amazônia. Aliás, a globalização do capitalismo tem sugerido uma outra interpretação da Amazônia e dos estudos amazônicos.
Sobretudo, os meios de comunicação devem primar pela pluralidade de opiniões e proporcionar uma imagem não fragmentada da realidade para que as matérias tenham propriedade. Embora os problemas amazônicos interessem como notícia, a abordagem que a mídia vem fazendo se limita a uma simples constatação, e sua crítica não transpõe as fronteiras estruturais, fazendo com que os interesses políticos e econômicos cada vez mais adquiram força e sejam mais determinantes.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Um olhar sobre o modo de vida amazônico


Uma reflexão dos processos históricos do século XXI e, de forma singular, os impactos da era da globalização, tem propiciado a constatação de alterações significativas no modo de vida das populações amazônicas, marcadas por múltiplas determinações econômicas, sociais, políticas e culturais. Temos sido confrontados com ações inconsistentes e vazias de políticas públicas que não têm priorizado, sobremaneira, a qualidade de vida dos povos da floresta.
A organização dos modos de vida dessas populações tem relação direta com a intervenção dos grandes projetos econômicos que originam políticas públicas intervencionistas e que tem beneficiado muito mais as forças mundiais do que os próprios povos regionais. Esta é uma crítica veemente que é feita e precisa continuar sendo feita pelos movimentos sociais, pela sociedade civil organizada, pelos subalternizados, desfavorecidos, pelos “sem voz” e “sem vez”, pelos que se sentem excluídos, discriminados e alijados do processo de desenvolvimento social. Infelizmente continuamos sendo expectadores e ou atores coadjuvantes que moram numa região que permanece sendo saqueada, devastada e seu povo empobrecido pela exploração econômica decorrente de um planejamento acumulativo deflagrado pelas estruturas do Estado nacional.
A Amazônia constitui área com características, problemas e possibilidades peculiares, e por isso deve ser analisada particularmente. Problemas como os ligados aos processos agrícolas, ao sistema de exploração e especulação fundiária, às questões sociais, ao nível de emprego e aos problemas ambientais, ainda persistem na Amazônia e são avassaladores e complicados. Mas há uma demonstração de que a região amazônica tem desejado a formulação de uma política contrabalançada e coerente de desenvolvimento, de construção de uma sociedade sustentável. Há uma constatação de alguns avanços produzidos pela execução de projetos, nos últimos vinte anos; obviamente que isso não elimina a complexificação e criação de outros e novos problemas.
Qualquer elaboração de políticas de desenvolvimento regional não pode deixar de integrar com eficiência os grupos humanos de áreas prioritárias, suas demandas e inquietações: assegurar a qualidade dos meios de transporte, o funcionamento e a modernização dos veículos de comunicação, o aproveitamento e a potencialização da rede fluvial e da frota de modernas embarcações de grande velocidade; precisamos considerar a inclusão das populações no crescimento econômico e as estratégias de sobrevivência econômica, social, étnica e cultural; não podemos deixar de exigir níveis de empregabilidade e de condições materiais básicas de subsistência. Precisamos realizar pesquisas de campo em áreas previamente selecionadas, tanto para solucionar problemas sócio-econômicos como para conhecer as riquezas naturais e recomendar os meios mais práticos para o máximo aproveitamento sustentável.
Nos estudos que explicam os complexos fatores que afetam a vida do homem em um determinado meio, não podemos priorizar só a dimensão econômica; também é necessário considerar o conjunto de múltiplos aspectos da formação social. Ou seja, viver em um país ou região significa antes de tudo saber como viver: é preciso ajustar-se às condições climáticas, à paisagem, aos recursos disponíveis, aos acidentes climáticos, vencer em suma o desafio da natureza e encontrar o seu próprio estilo de vida naquele ambiente em que se inseriu. Esse desafio ainda não foi respondido pelo homem da Amazônia; este ainda desconhece a magnitude da sociedade regional e que por isso tem estabelecido um diálogo contraditório com as exigências do seu meio.
Qual a compreensão que temos do mundo amazônico, com suas gentes, caracterizado pela pluralidade étnica, dotado de uma paisagem exuberante, com lendas e crendices, com saberes tecnológicos e científicos, com uma cultura típica, produzida por relações e processos dos mais diversos? Como e quando foi que processos e estruturas de organização social e comunitária começaram na Amazônia e por que começaram? Qual o sentido que engendram e mantêm os fenômenos e manifestações sociais, econômicas, políticas, culturais e religiosas na nossa geografia? Quais as características básicas e essenciais da formação dos modos de vida das comunidades amazônicas? Quais as implicações da lógica global capitalista nas relações sociais dos ribeirinhos, das populações indígenas, das populações tradicionais, dos povos da várzea, das populações urbanas? São estas e outras questões que marcam a história da sociedade regional e que suscitam alguns desafios para o homem amazônico. Estas questões podem ser discutidas nos fóruns, nos simpósios, nos congressos científicos, nas assembléias, nas reuniões comunitárias, nos painéis, nas mesas redondas, nas tribos, nos quilombos, nas favelas, nas universidades, nas escolas públicas e privadas, em todos os lugares.
A ciência, com suas várias áreas de conhecimento, e os saberes tradicionais nos ajudarão, por certo, a compreender as peculiaridades da nossa região e entender o por que das coisas, das idéias e das gentes que existem hoje, assim como de coisas, idéias e gentes que não existem mais, e ainda das que, talvez, poderão existir amanhã.
É neste sentido que queremos compreender a complexidade dos lugares que formam a Amazônia, com sua diversidade social e biológica, sua historicidade, os processos de construção de identidade, o governo e as relações de poder, o mundo da produção e do trabalho, os mecanismos de subsistência, a dinâmica das classes sociais que engendram e produzem comportamentos, vontades e desafios. Entender os aspectos originários, influenciadores dos modos diversos de organização da vida na Amazônia, tem sido a preocupação na agenda de muitos.

Zona Franca de Manaus: os inversos e reversos do desenvolvimento regional


A implantação da Zona Franca em Manaus (ZFM), única política pública para a economia da região financiada pelo governo federal, trouxe conseqüências sociais de grande impacto, afetando os alicerces das formas de organização sócio-econômica, cultural e política, encontradas na região. Na ótica capitalista, o modelo Zona Franca canalizou toda a sua lógica e seus princípios na Amazônia, fazendo cumprir a estratégia do processo de mundialização da economia e do capital, da nova lógica da divisão internacional do trabalho, que culminou na integração da Amazônia ao Estado Nacional e sua inserção na esteira do capitalismo mundial.
Esse pólo atrativo de desenvolvimento provocou o êxodo rural e, por efeito, o inchaço e a urbanização desordenada da capital, a favelização da cidade e inclusive o surgimento contínuo de novos bairros, sem as condições mínimas de infra-estrutura. O aumento populacional de Manaus elevou consideravelmente a demanda por serviços públicos de saúde, educação, transporte, saneamento básico que não foram supridos pelo Estado.
O que se percebe é que a oferta de emprego até hoje é extremamente limitada em relação a este enorme contingente populacional que cada vez mais migra para a capital; vivendo-se com um baixíssimo salário, revelam-se os sérios vícios do modelo que o tomou como condição primeira para a sua implantação no Amazonas.
A notícia do desmonte da Zona Franca de Manaus tem mobilizado algumas forças políticas e econômicas porque representaria o próprio desmonte das instituições do Estado, e isto implicaria na redução das possibilidades de trabalho e empregos na região, na precarização dos investimentos econômicos e uma deficiência na prestação de serviço público.
O modelo Zona Franca não significou necessariamente o progresso equitativamente distribuído, que pudesse promover socialmente os manauenses. É só visualizar o padrão de qualidade de vida das pessoas; houve, na verdade, um decréscimo e os problemas urbanos se agudizaram; a cidade se empobreceu e seus dramas continuam nos perplexificando, tais como a pobreza, a insegurança, índices alarmantes de criminalidade, degradação da vida humana, sem se falar nas dificuldades das populações rurais.
Mais da metade da população sobrevive hoje com um salário irrisório, vivendo em condições sociais precárias, acentuando as condições catastróficas de habitação e o alargamento do subemprego e desemprego. Tal contexto tem contribuído para o aumento do índice dos problemas sociais relacionados com a delinqüência e violência urbana, a ação de “gangues”, de quadrilhas e grupos de extermínio, corrupção policial, tráfico de drogas e outros.
Temos percebido o engessamento do Estado e sua incoerência em não investir em novas alternativas econômicas de integração regional que possa aumentar a sua receita, ampliar a economia regional e gerar empregos diretos e indiretos. Precisamos refletir sobre a enorme dependência econômica e social que a região tem desse modelo. O que significaria a extinção da ZFM? O caos social? O Estado faliria?
Pensar o futuro da Amazônia pressupõe considerar a questão do modo histórico de desenvolvimento econômico que se adotou e precisamos refletir acerca do modelo de atividades industriais e como tem impulsionado o desenvolvimento sustentável da Amazônia e suas implicações na geopolítica e na economia regional.
A Zona Franca, que tem enfrentado enormes impasses para a sua manutenção, ainda é o modelo que pode garantir todos os benefícios alcançados para o Amazonas, mesmo sendo ínfimos. Superar as fronteiras e alargar as perspectivas em termos de desenvolvimento auto-sustentável da economia do Estado é um desafio. Este modelo sozinho não significa uma alternativa consistente e única, para resolver eficazmente os problemas regionais, no sentido de pelo menos reduzir os dramas da maioria da população manauense.
Qualquer programa de desenvolvimento regional não pode pensar jamais em romper com o contexto sócio-ambiental amazônico; jamais poderá ignorar a riqueza da biodiversidade e do conhecimento tradicional dos povos da floresta; é necessário ter cautela para que não se torne um reprodutor de enormes bolsões de miséria nas periferias das cidades.